Há mais de um ano, eu me prometia uma visita ao Marcel, restaurante hoje comandado pelo jovem chef Raphael Despirite. Por esses desencontros que a gente não sabe bem explicar, acabava sempre sendo levada por caminhos outros e adiando minha ida à casa. Fora o que eu vinha lendo sobre o trabalho de Raphael, minhas fontes mais seguras em São Paulo me garantiam que seu trabalho é uma das melhores coisas que surgiram na cidade nos últimos anos. Finalmente, fui, chequei com meus olhos e já adianto que corroboro o que se anda dizendo do menino por aí... Sim, até eu, do alto dos meus parcos 31 anos, me permito chamá-lo de menino, pois, além de ter cinco anos menos que eu, ele tem cara de menino, jeito de menino e, eu ousaria dizer, coração de menino. Mas o talento é de gente grande...
O restaurante, instalado num flat nos Jardins, está nas mãos da família de Raphael desde a década de 60, quando seu avô o comprou. Desde então, firmou-se com cardápio francês clássico, com grande destaque para os suflês. Raphael, que tem formação na França e passagens por cozinhas de Portugal e Espanha, apesar de conduzir com maestria, ao lado do pai, a tarefa de manter a boa fama dos suflês do Marcel, é inquieto o suficiente pra querer ir muito além. E vem deixando sua assinatura no menu degustação que criou, com o qual tem conseguido, a despeito da total falta de charme do ambiente de um restaurante de flat, atrair os olhares da cidade.
Começamos com patê de foie e um incrível chutney de tomate, acompanhando os ótimos pães, que, há pouco tempo, passaram a ser feitos na casa. O pãozinho de milho é quase um afago de avó e me fez pedir bis.
O primeiro passo do menu foi sua já famosa combinação de foie gras assado com uvas congeladas, marinadas em cachaça. As uvas são uma explosão de frescor, num feliz casamento com a untuosidade do foie gras.
Na sequência, uma espécie de sunomono de maxixe sobre creme de queijo. A crocância e o equilíbrio de sabor que Raphael soube tirar de um ingrediente tão simples e desprezado como o maxixe traziam à tona sua grande sensibilidade. Ao menos, foi essa a leitura que fiz.
Próximo prato, um interessante (acreditem, era interessante mesmo; não se trata de um uso vazio do adjetivo, por falta de outro melhor...) e saboroso carpaccio de língua defumada, salpicado de pipoquinhas de alcaparras (desidratadas e fritas), detalhe que fazia toda a diferença...
Em seguida, camarão em perfeito ponto de cocção, com um perfumado e delicioso molho de açafrão, acompanhado de tagliatelle de cenoura, que é, de fato, apenas... cenoura.
Um sopro de delicadeza: o tenro cherne, no ponto certo, com um levíssimo pil pil, flor de jambu e cubinhos mandioca fritos com perfeição. Eu poderia comer quilos daquela mandioca frita com tamanha sutileza, mas, aí, talvez, me esquecesse dela facilmente, como lembrou um sábio amigo à mesa. O fato de serem dois raros pedacinhos fez com que marcassem minha memória definitivamente.
Eis que veio, então, o incontornável suflê. Por sinal, um ótimo suflê de gruyère.
Finalmente, um tenro, rosado e suculento entrecôte, com purê de batata-doce e castanhas de caju.
Abrimos caminho para as sobremesas com os falsos fios de ovos, lúdicos e cheios de frescor. Raphael descasca e congela a manga, ralando-a, congelada, somente no momento de servir. Apenas manga, nada mais, nem açúcar.
A seguir, sua versão de salada de frutas: melão, amora, morango, purê de manga, gomo de tangerina e uma mini beterraba em redução de balsâmico. Praticamente uma aquarela.
O desfecho ficou por conta do delicado suflê de cupuaçu, que, apesar de gostoso, não me pareceu o encerramento ideal para aquele menu...
A cozinha de Raphael se revelou a mim como uma cozinha de detalhes, marcada pela sutileza e pela devoção aos ingredientes. Mas, eu diria que as sobremesas ficaram um tom abaixo dos pratos. Diria mais: acho que Raphael, talvez, devesse se libertar de vez dos suflês que fizeram a fama do Marcel e dar vazão à sua veia criativa, sem ressalvas, sem concessões. Creio que isso só teria a fortalecer o nome de um cozinheiro que se projeta como uma das grandes promessas do cenário gastronômico paulistano.
Marcel – no térreo do flat Quality Suites Imperial Hall – Rua da Consolação 3555
http:/www.marcelrestaurante.com.br
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