Seis meses atrás, escrevendo sobre meu almoço no Dinner by Heston Blumenthal, comentava como seria interessante ver um restaurante como aquele tomando corpo a partir dos anais da cozinha brasileira. Sei que é projeto ambicioso, que demandaria meticuloso trabalho de pesquisa e alto investimento. E, certamente, envolveria um risco que poucos quereriam ou poderiam correr. Pequenas as chances de algo assim se concretizar por aqui num futuro próximo. Mas pensei comigo: nada nos impede de refletir a respeito da possibilidade de tomar a pesquisa histórica – não só de receitas, mas de ingredientes – como um possível ponto de partida para a concepção de novos caminhos culinários.
Dias depois, levei a ideia ao sociólogo Carlos Alberto Dória, através de um convite prontamente aceito por ele: pesquisar e selecionar receitas esquecidas, em desuso no Brasil, para, em seguida, submetê-las a um grupo de cozinheiros, que teria o desafio de atualizá-las, trazê-las para um contexto moderno. O resultado dessa proposta está na Prazeres da Mesa deste mês. Foi longo o caminho que nos levou a ele. Ricas discussões, trocas de ideias e a inestimável colaboração, não só de Dória, mas dos chefs Alberto Landgraf, Raphael Despirite, Rafa Costa e Silva, Saiko Izawa, Viviane Gonçalves e Thiago Castanho, tornaram essa reportagem possível.
Difícil dar conta do tanto que aprendi nesse processo. Não tinha, por exemplo, a mais pálida ideia de que, no século XVIII, fazia-se um vatapá diferente do que conhecemos, à base de fruta-pão, que desapareceu com o tempo. Outra surpresa foi descobrir que o famoso picadinho assumiu diferentes versões no Brasil até que se impusesse a forma popularizada no sudeste do país. Antes do picadinho carioca, houve um picadinho à baiana – que, ao que parece, ficou para trás mesmo na Bahia –, onde se usavam carne picada, pimenta comari, coentro, tomates, vinagre, maxixes, jilós e quiabos picados e, ainda, azeite de dendê. Estes são apenas alguns exemplos dos pratos garimpados para a matéria, que, no fundo, mais do que retomar receitas, traduz um chamado a que os cozinheiros se debrucem sobre certos ingredientes, muitas vezes esquecidos, explorando sua riqueza e suas cargas de brasilidade. Vislumbramos nesse processo um caminho possível para a projeção de um quadro moderno da cozinha brasileira. Dar voz atual ao passado, em vez de aprisioná-lo sob a bandeira da autenticidade.
Não posso deixar de trazer à lembrança as palavras do chef Jefferson Rueda, em entrevista que me concedeu há poucos meses: "Comida tem que ter história e geografia. Cabe a nós, cozinheiros, não deixar morrer nossa cultura."
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