Inspiração, influência ou cópia: onde está o limite?

Novembro 2012

Nas últimas semanas, não foram poucas as vezes em que me vi discutindo com amigos uma questão cada vez mais recorrente num mundo tão conectado como o de nosso tempo: quando cabe falar em plágio na gastronomia? Como identificar a linha tênue que distingue influência e cópia? A questão me revisitou quando publiquei o último post, sobre a “crème brûlée” de barriga de porco, apresentada por Rodrigo Oliveira e Julien Mercier em um congresso de gastronomia no Panamá. No dia seguinte, digamos que um passarinho me soprou que se trata de processo idêntico ao de um prato executado em certo restaurante paulistano. Bastou pra interrogação se instalar debaixo do meu travesseiro nas últimas noites...

Não é preciso fazer grande esforço pra lembrar os muitos exemplos que povoaram essas recentes conversas que mencionei. O foie gras vegetal (em que se usa o abacate no lugar do fígado gordo de ganso) de Raphael Despirite, do Marcel, em São Paulo, que remete inevitavelmente ao de Josean Alija, do Nerua, em Bilbao. A combinação de pupunha e pó de pipoca, que numa mesma semana de setembro passou por minha mesa duas vezes, uma no DOM, de Alex Atala, em São Paulo, outra no Oro, de Felipe Bronze, no Rio de Janeiro. Felipe se inspirou em Alex ou teria sido o contrário? Ou teriam ambos se inspirado em um terceiro? Faz pouco tempo, conversando com a chef Teresa Corção, tentávamos lembrar o que veio primeiro: o fettuccine de pupunha do DOM, ou o talharim de pupunha do Maní? A memória não nos socorreu...

Penso, inevitavelmente, numa história que ouvi em casa tantas vezes a ponto de sabê-la de cor. Meu pai, em visita ao saudoso Baden Powell, tomou o violão pra mostrar-lhe uma valsa. Ao fim da música, Baden disse: “como você toca bonito essa minha valsa...” No que meu pai retrucou: “Mas essa valsa é minha...” Ainda surpresos, encontraram, aqui e ali, algumas diferenças na melodia, mas me garante meu pai, sempre com assombro, que a primeira parte era praticamente idêntica.

Então, me pergunto: o ser humano é mesmo tão original a ponto de ser impossível que duas pessoas, em lugares diferentes, tenham uma mesma ideia? Não posso ignorar o fato de que no tempo do curioso encontro entre meu pai e Baden, não havia iPhones e redes sociais, o ritmo da vida era outro e as pessoas não se sabiam nem se acompanhavam tão de perto como acontece hoje. O que faz toda a diferença. Ainda assim, me pergunto: seria impossível acontecer hoje?

Tendo a crer que não, não é impossível.  Mas acredito que, no mais das vezes, o que ocorre é algo um tanto mais banal. Está tudo posto, as referências estão todas aí, as pessoas bebem nas mesmas fontes. Sem dúvida, inspiram-se umas nas outras o tempo todo, muitas vezes, até de forma inconsciente. E, por mais que a tecnologia nos propicie um bombardeio diário de informação, por mais que se viaje e que se leia, por mais que se navegue freneticamente nas redes sociais, não há como saber tudo o que se passa em todas as cozinhas do Brasil e do mundo a ponto de se poder, sem hesitar, afirmar quem influenciou quem, quem se inspirou em quem, quem copiou quem...

O que sei é que toda vez que converso sobre isso com alguém, não consigo escapar a uma lembrança que costuma me tomar nesses momentos: a reinterpretação que Picasso fez da incrível obra de Velázquez intitulada “As Meninas”. Uma série de mais de 50 pinturas, ao cabo das quais, Picasso havia indiscutivelmente criado suas Meninas. Jamais esqueço meu deslumbramento na primeira vez em que as vi no museu dedicado ao pintor em Barcelona.  

O mestre deixou a lição: se é para se inspirar no que alguém já fez, recriar ou reinterpretar algo ou mesmo apropriar-se da ideia de outrem, que seja para, em algum momento, sair da sombra do criador, e fazer algo seu – quem sabe, ainda melhor que o original...

por: Paulo José em 15-11-2012
Ótima reflexão! Mas por que não considerar que foi uma inspiração, uma homenagem e não um plágio? Não deve ser um orgulho para um chef ver seu prato tão difundido a ponto de ser lugar comum? O pessoal do Aconchego com o bolinho de feijoada e o da Academia com o escondidinho não se sentem orgulhosos? O orgulho só vem com o dévido crédito? A cozinha deve ficar limitada àquele nicho ou o bom, como toda arte, é ver cada vez mais pessoas comentando, conhecendo e impressionada como "como alguém pensou nisso"? Não tenho a pretensão de ter as respostas, são apenas reflexões! Abraços, sempre acompanhando...
por: Constance em 16-11-2012
É isso aí, Paulo, não há mesmo resposta fechada para essas perguntas. O importante é refletir a espeito...
por: Julien em 20-11-2012
Constance,
Venho aqui para responder ao seu texto. antes de tudo, obrigado pelo lindo post sobre nossa barriga de porco, e desculpa pelos erros de português no meu post. Fica a vontade para corrigir se precisa!
Antes de tudo, vamos pensar um pouco: a barriga de porco é sem duvida o corte suíno mais presente nos restaurantes do Brasil e mundo afora. Então vira difficil saber quem fiz a primeira. Seria igual tentar achar entre o ovo e a galinha, quem chegou primeiro.
Copia existe na gastronomia, e sou um daqueles que acham que nao se invente coisas na cozinha, mas sim se interpreta. Um exemplo é o azeitona do Adria: ele inventou? Ou ele adaptou um processo que foi apresentado a ele pelo Hervé This? Difícil de responder! O que seria triste, seria o Adria falar que ele descobriu a esferificação, ou um outro chef apresentar essa azeitona sem dar o devido credito! (e já aconteceu!!)
Voltando a barriga. No engenho Mocoto, nao inventamos nada. As vezes brincamos com isso, mas estamos bem cientes do que estamos fazendo. Na hora de testar barrigas de porco, nosso caminho foi seguir as regras do torresmo, que nao deu o resultado esperado. Começamos então um trabalho de pesquisas: em livros, internet, e com os amigos. Fomos jantar no Epice, e lá comemos a suculenta barriga do Alberto, qual você se refere acredito no seu post. Pedimos pro Alberto nos explicar seu processo, processo que ele nos deu sem nenhum problema. Nesse momento, ele nao nos falou de tirar uma parte da pele... Pode ser que ele esqueceu, ou pode ser que ele mudou o seu processo depois, isso pouco importa... O fato é que de volta ao Engenho, aplicamos os conselhos do Alberto, juntos com os nossos conhecimentos dos torresmos, e ainda nao ficamos felizes com o resultado! A pele ficava ainda murcha e grudenta nos dentes. Depois de alguns dias, o Rodrigo, pensando no leitão espanhol, tive a idéia de tirar uma parte da pele, processo que funcionou. Nasceu nossa brincadeira: a creme brulée de porco, porque você pode comer tudo de colher.
Resumindo: entre 2 cozinhas diferentes, tivemos a mesma idéia. E nao é difficil imaginar porque... Com certeza se inspiramos muito dos mesmos cozinheiros, temos bastante livros em comum, e afinal, trocamos muitas idéias entre nos, chefs da nossa geração!!!
Nao falta exemplo da mesma coisa ter acontecido em outros lugares: você citou o Raphaël e o foie-Gras vegetal do Nerua.. Um dia, twitei da minha descoberta em fazer pipoca com a tapioca granulada, e em 15 minutos, a Roberta me mandou mensagem dizendo que ja tinha feito isso.. (esse exemplo me lembra todo dia que nao vou inventar nada) As vezes eu ligo Thomas Troisgros para contar de uma de nossas descobertas, e ele me fala que descobri a mesma coisa! Felizmente, existe essa troca entre nos e ninguém fica chateado, pelo contrario, enriquece tudo mundo.
A copia existe e conhecemos muito bem quem pratica isso. Eu do meu lado, nao me preocupa em saber quem descobri isso ou isso. Seria uma batalha sem fim. Olha hoje: ainda nao sabemos que descobriu primeiro as Américas: Christophe Colombus?? Os Vikings??? Ou simplesmente ninguém descobriu, já que os índios estavam lá há séculos!!!
Mas posso falar uma coisa e assim fechar meu post. Citando o Ferran Adria (citando, nao copiando):
"Na gastronomia como em tudo, quem inventa uma coisa nao é quem descobre essa mesma primeiro, mas sim quem divulga-la primeiro"
por: Constance em 20-11-2012
Oi, Julien. Obrigada por comentar e por enriquecer a reflexão... É sempre bom parar pra pensar a respeito de tudo isso. É uma discussão sempre atual, né? Um abraço. Bom te ver por aqui.
por: Lemmings em 20-11-2012
Já era fã do Julien, agora fiquei ainda mais.
Parabéns Julien pela resposta e parabéns também pela aula do Cupolate, fiquei feliz em saber que foi você que descobriu essa iguaria.

bjos.

Le
por: Julien em 21-11-2012
Lemmings,
Obrigado muito pelos elogios... Mas nao descobriu o cupulate. O Cupulate é um produto que existe há 20 anos no Pará, desenvolvido pela Embrapa, porém nao se acha e ainda nao tem qualidade. Isso é nossa proposta com a AMMA, fazer ele melhor e mais conhecido!
Abraço
Julien
por: Pedro de Artagao em 29-11-2012
Parabéns ao Julien! Não há dúvida que o futuro é a colaboração, assim todos crescem, evoluem e fazem com que a gastrônomia no Brasil cresca cada vez mais! Vivemos um momento belissímo aonde os jovens chefs interagem e realizam juntos. Acredito em coincidencias e em inconsciente coletivo mas tb acho que a inspiracao vinda do trabalho de outro chef tambem é valida. Assim como a barriga do engenho vc mesma ja encontrou similaridades no pao de queijo do Iraja e no super famoso dadinho do próprio mocotó, o qual eu nao teria o menor problema em utilizar como referência, só nao seria justo com a Academia da cachaça e seu bolinho de estudante que foi a inspiracao para o nosso prato.
O que eu acho interessante na reflexao é que o assunto só ganha dimensao quando envolve chefs brasileiros. E quando a inspiracao vem de fora, pq nao comentamos?? É ai que a coisa ganha dimensao pois a maioria dos chefs estrangeiros de ponta já publicaram alguma especie de livro escancarando suas receitas e segredos. Fica bem mais facil "criar" assim, nao é verdade? O que o jovem cozinheiro tem que entender é que não há nada vergonhoso em citar suas referências e homenagear seus colegas!

ps: se nao me falha a memoria o alex ja fazia o fetuccine até mesmo antes do Mani abrir. Acredito ser a assinatura mais antiga dele!

abs
Pedro
por: Constance em 29-11-2012
É por aí mesmo, Pedro, acho natural um chef influenciar outro. E acho muito bacana quando se assume de onde vem a inspiração. Quando a coisa assume o tom de troca, não há por que falar em cópia...
Agora, você sabe que o William Chen Yen me disse outro dia no twitter que o fettuccine não é nem no Maní nem do DOM e já estava publicado num livro da década de 70?
por: Julien em 20-04-2014
Lembrando do assunto, e vendo esse texto hoje, pensei em você:
http://blogs.pme.estadao.com.br/blog-do-empreendedor/a-razao-pela-qual-steve-jobs-gostava-tanto-do-suco-de-cenoura-mais-caro-do-mundo-quer-inovar-copie/
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