Frequento o restaurante da chef Roberta Sudbrack há pelo menos cinco anos. Em muitas ocasiões, estive ali a convite; em outras tantas, fui por minha conta. Voltar à casa tantas vezes me permitiu acompanhar a evolução do trabalho daquela que é, pra mim, a melhor cozinheira em atuação no Rio de Janeiro. E me trouxe também a percepção da exata medida em que sua tremenda entrega pessoal tem relação direta com o que se passa à mesa.
Quem a acompanha nas redes sociais, frequenta seu restaurante e é observador o bastante pra notar suas olheiras, sabe que aquela cozinha é quase uma extensão dela mesma. Algo como um terceiro braço, um segundo par de mãos. Às vezes, parece que é como se ela não existisse fora daqueles limites. Fosse eu sua médica, provavelmente recomendaria que fizesse diferente. Como cliente, confesso que, a cada vez que cruzo aquela porta, espero, egoisticamente, que ela esteja na cozinha. Na última sexta-feira, quando lá fui jantar, ela estava. O jantar? Uma das minhas melhores refeições ali nos últimos anos.
O menu do dia incluía alguns dos pratos da nova “coleção”, intitulada “Feitos à mão”. A chef me apresentou outros mais ao longo do jantar. Não posso deixar de lembrar que dificilmente o leitor vai encontrá-los, todos, numa só noite. Não apenas porque extrapolam o número de cursos dos menus da casa, mas, especialmente, porque os cardápios mudam diariamente segundo os desígnios do mar, da terra, dos quintais.
Tem camarão, costela de Kobe, foie gras. Mas tem também fruta-pão, semente de chuchu, patas e antenas de camarão, tucupi, inhame, rapadura. Tudo acomodado sob um olhar que não acolhe o óbvio e que não se parece com nada do que se vê em outras mesas – coisa cada vez mais rara nos dias de hoje. Ali, não se segue modismo, nem se cai na armadilha de servir estereótipos. O Brasil de Roberta Sudbrack não se presta ao consumo irrefletido.
É assim na delicadeza do atum cru envolto em lâmina de fruta-pão com cumaru, mergulhado em consommé de cogumelos marcado pela picância do gengibre. Bem como no intenso sabor do camarão de fumeiro com “favas” de chuchu (na verdade, suas sementes).
Surpreenderam-me o ovo de codorna pochê sobre ninho de antenas de camarão, pra comer numa bocada só, e o manto de soberbo lardo cobrindo suas patas crocantes e barbas de milho. Ambos os pratos evidenciam a ousadia da chef, sua disposição de sair da zona de conforto e dela tirar também aqueles que vão à sua casa. Já vislumbro mensagens incrédulas de alguns amigos: “patas e antenas de camarão?!”. Não tenho a esperança de que minha retórica vá tirá-los da incredulidade. Só posso dizer que também duvidei. E que o único meio de exterminar a dúvida é experimentar.
Uma pérola, o bocado em que contracenam a sutil doçura do crocante de fruta-pão e a untuosidade do foie gras. A cereja do bolo é a farinha de banana, que tem sido elemento frequente na cozinha da chef nos últimos anos, mas ainda me desconcerta cada vez que levo à boca.
O prato batizado “Mar, terra, quintal” trazia camarões que asseguro estarem entre os melhores que comi ultimamente. Envoltos em finíssimas fitas de palmito fresco e polvilhados com ovo caipira (cozidos e ralados, ou seriam mexidos bem miúdos?). Sentia-se, ainda, uma espécie de sutil aïoli. Brotos e flores arrematavam a inspirada cena. Talvez o melhor da noite.
O diálogo entre pato e tucupi ressurge na forma de um delicioso caldo onde brilham o sabor de um, a acidez do outro. Mergulhado nele, um especialíssimo risotto feito com arroz envelhecido, pontuado por pedaços crocantes de aspargos.
O miolo de costela Kobe flutua em chá de fruta-pão. Apesar da nobreza da carne e da infernal textura garantida pela gordura, talvez tenha sido o prato menos expressivo do percurso.
Enfim, naco de ojo de bife na brasa, em ponto impecável, acompanhado de béarnaise batido à mão e farinha de banana. Também não me arrebatou como arrebataram os demais pratos.
Momento especial antecede a sobremesa. O queijo é um Canastra curado por um ano e meio no próprio restaurante. A compota, delicadíssima, é de limão-cravo. A broa é de fubá e, provavelmente, vai estragar você pra todas as outras broas...
A rapadura derrete sobre o cremoso arroz de leite, que ganha a surpreendente companhia de um delicioso consommé de cerejas, vertido à mesa.
Com o café, uma bela seleção de rapaduras: melado do Pará em canequinha de barro, rapadura mole, também do Pará, e, ainda, exemplares de Minas Gerais, do Ceará e de Pernambuco.
Saí dali feliz, certa de que há muito Brasil para além do exótico e da caricatura. Está aí, pra quem quiser buscar além do óbvio.
Roberta Sudbrack - Av. Lineu de Paula Machado, 916 - Jardim Botânico
http://www.robertasudbrack.com.br/