[...] ainda há um Brasil bom que a gente desperdiça de bobagem, um Brasil que a gente deixa para depois, e entretanto parece que vai acabando; [...]. Só de repente a gente se lembra de que esse Brasil ainda existe, o Brasil ainda funciona a lenha e lombo de burro, as noites do Brasil são pretas com assombração, dizem que ainda tem até luar no sertão, até capivara e suçuarana – não, eu não sou contra o progresso ('o progresso é natural') mas uma garrafinha de refrigerante americano não é capaz de ser como um refresco de maracujá feito de fruta mesmo – o Brasil ainda tem safras e estações, vazantes e piracemas com manjuba frita, e a lua nova continua sendo o tempo de cortar iba de bambu para pescar piau. (Rubem Braga, Crônicas do Espírito Santo, p.12)
Perdoem se este blog lhes impinge Rubem Braga uma vez mais. Não, não pretendo fazer deste espaço um enfadonho exercício de citações. Se recorro novamente ao cronista, isso se dá por duas razões.
Primeiro porque Braga é companhia constante na minha vida; voz que, de certa forma, interiorizei. Sinto-o quase como um amigo, possivelmente porque suas palavras me ajudem como poucas na difícil tarefa de traduzir o mundo.
Segundo porque é recorrente essa estupefação diante dos rincões do Brasil por onde ando. “Por que atravessei anos deixando pra depois?” “Quanto desperdício não ter conhecido antes este lugar.” Foi exatamente o que senti nos dias que passei em Novo Airão, na Amazônia. Mesmo se não tive a chance de ir além da experiência rasa que tem o turista comum que se hospeda em qualquer dos hotéis de selva da região, tudo era impregnado desse Brasil que às vezes a gente esquece que ainda existe.
A profunda comunhão do rio com a floresta. As noites que pareciam inventar diariamente novas estrelas. O silêncio de uma solidão ainda possível. O navegar quase sem ver gente – e quando havia gente, era de uma simplicidade rara. O tanto que a terra e as águas nos deram de comer. Graviola, cupuaçu, taperebá, tucumã e até azeitona, que ali não é o fruto da oliveira, mas algo muito diferente. Tambaqui, matrinxã, pirarucu, tucunaré, sempre na companhia de banana pacovã. E, claro, amalgamando cada refeição, muita farinha de Uarini – que eu ouvia chamar carinhosamente de farinha ovinha e achava tão poético, mas, depois de tomar algumas broncas por lá, está entendido, é farinha de Uarini e não se fala mais nisso.
Em breve, conto dos restaurantes que visitei e talvez do hotel onde estive hospedada, já que muitos leitores e seguidores me perguntaram sobre hospedagem na região. Por ora, o que eu queria era dizer desse país que a gente não deve desperdiçar, não deve deixar pra depois.